ESPECIAL

Mariana: a gênese da tragédia

Por Estêvão Bertoni, Rodolfo Almeida e Ariel Tonglet em 04 de novembro de 2016

Como uma série de falhas de projeto, construção e operação na barragem de rejeitos da Samarco em Mariana levou ao maior desastre ambiental do país

Em 5 de novembro de 2015, uma barragem que armazenava 55 bilhões de litros de rejeitos de minério de ferro, volume equivalente ao de nove lagoas como a Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, ruiu abruptamente na cidade de Mariana, em Minas Gerais.

Imagens de trajeto da lama oito dias após o acidente, da barragem de Germano (em Mariana) até a Hidrelétrica Risoleta Neves (Rio Doce)

Era uma quinta-feira. Tremores de terra tinham sido sentidos desde as 13h01 por funcionários que trabalhavam no local. Por volta das 15h30, um "tsunami" de lama desceu pelo vale onde ficava o reservatório, engoliu um vilarejo inteiro que abrigava 226 famílias e atingiu três rios da região.

Ao todo, 32 bilhões de litros de rejeitos (material descartado no processo de mineração) foram lançados no meio ambiente. Grande parte ficou depositada nos primeiros 100 km do percurso da lama, até a usina hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga, no município de Rio Doce.

Cerca de 5,5 bilhões de litros chegaram ao rio que leva o mesmo nome. No curso d'água que atravessa dois Estados, o material percorreu 537 km até desembocar, 16 dias após a tragédia, no oceano Atlântico, pelo litoral do Espírito Santo.

O Doce tornou-se um rio de lama. Cidades que estavam no seu caminho e que dependem dele, como Governador Valadares (MG), com 280 mil habitantes, tiveram o abastecimento interrompido. Garrafas de água mineral foram distribuídas à população pelo Exército, e caminhões-pipa encheram caixas d'água nos locais mais afetados, como Colatina (ES), com 123 mil moradores. A pesca no rio está proibida pela Justiça até hoje.

A ruptura da barragem de Fundão, que pertencia à Samarco, mineradora controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, é considerada a maior tragédia ambiental do país e da história mundial em termos de volume vazado (32 bilhões de litros de rejeitos), extensão de danos ao meio ambiente (mais de 600 km, da barragem até a praia de Regência, no litoral capixaba) e prejuízo financeiro (R$ 5,8 bilhões), segundo a consultoria Bowker Associates, dos EUA.

O desastre causou a morte de 14 trabalhadores que estavam no reservatório e de cinco moradores de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana localizado a apenas 5 km de distância da estrutura. Duas das vítimas eram crianças. Tinham cinco e sete anos. O corpo de Edmirson José Pessoa, 48, funcionário da Samarco havia 19 anos, nunca foi encontrado. Algumas das vítimas foram achadas a um raio de 60 km da barragem.

A mineradora, suas controladoras, os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e a União assinaram quatro meses após o desastre, em março de 2016, um acordo de R$ 20 bilhões. O documento, homologado em maio do mesmo ano, previa a recuperação do rio Doce em um período de 15 anos. Até 2018, as empresas teriam de depositar R$ 4,4 bilhões em uma fundação (o restante seria desembolsado até 2030). A Samarco diz ter gasto até julho de 2016 R$ 655 milhões em medidas para mitigar os danos.

O Ministério Público Federal, porém, pediu a suspensão do acordo, alegando que as comunidades atingidas pela lama não tinham sido ouvidas no processo. Em julho de 2016, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) suspendeu liminarmente (de forma temporária) a homologação. O documento permanece sem validade jurídica, embora a fundação continue a atuar dentro do que foi acordado. A Procuradoria pede na Justiça reparação de R$ 155 bilhões, quase oito vezes o valor do acordo.

Batizada de Renova e presidida pelo biólogo e administrador de empresas Roberto Waack, a fundação criada pelas três mineradoras iniciou suas atividades em agosto de 2016. Elas se dividem em ações socioambientais (como obras de coleta e tratamento de esgoto e melhorias do abastecimento de água nas regiões atingidas) e socioeconômicas (auxílio financeiro e iniciativas para a retomada de atividades econômicas). A entidade diz que representantes das comunidades afetadas e especialistas indicados pelos Ministérios Públicos Estaduais e Federal irão integrar um conselho consultivo com voz dentro da fundação.

Em 20 de outubro de 2016, o Ministério Público Federal denunciou 21 pessoas, entre dirigentes da Samarco, da Vale e da BHP. Se aceita a denúncia pela Justiça, eles poderão responder por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), inundação, desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais. Também foi denunciado um engenheiro terceirizado, sob suspeita de apresentar laudos falsos. Todos negam terem cometidos os crimes.

A Samarco#

As barragens de rejeitos: grandes ‘lixões’#

A lama e a areia que surgem do tratamento do minério são jogadas pelas mineradoras em barragens de rejeitos, espécies de lixões. A Samarco utilizava em sua unidade de Mariana a barragem de Germano, que foi construída em 1976, e a Cava (mina exaurida) do Germano, onde o rejeito era armazenado apenas na forma de areia.

Como a capacidade dos dois reservatórios estava no limite (a de Germano, que contém 200 bilhões de litros de rejeitos, esgotou-se em 2009), e a produção da mineradora aumentava ano a ano, ela decidiu construir no vale do córrego de Fundão, grudado à barragem de Germano, um novo reservatório. Achar um local é um desafio para as mineradoras devido às exigências ambientais e proximidade de comunidades. Estudos de 2005 mostravam que o terreno onde a barragem foi erguida era a melhor opção, pois, dali, a empresa poderia lançar a água drenada da estrutura em outra imediatamente abaixo, chamada de Santarém.

Havia o risco, porém, da proximidade com o vilarejo de Bento Rodrigues. Os primeiros moradores do local começaram a chegar ali em 1697, durante a época das expedições bandeirantes. A vila foi fundada por um cabo chamado Bento Rodrigues, daí seu nome. Em 1831, o  local já tinha uma capela e 454 habitantes, segundo informações coletadas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) encomendado pela Samarco. O EIA é um relatório elaborado por especialistas de diversas áreas. Ele diagnostica a influência de uma obra no meio físico, biológico e socioeconômico. O documento foi uma exigência do governo de Minas para a concessão de licenças ambientais de Fundão.

Mas o estudo considerava baixa a possibilidade de uma tragédia.

"Ainda que resulte em um risco moderado por ser improvável, identificou-se um evento cujas consequências seriam catastróficas, que corresponde ao rompimento da barragem com efeito dominó sobre a barragem de Santarém. (...) É recomendável o desenvolvimento de um estudo quantitativo, com modelagem do evento e identificação mais precisa de suas consequências, em especial sobre a comunidade de Bento Rodrigues", afirmava, em 2005, dez anos antes da tragédia, o estudo.

Mesmo considerada improvável, a preocupação na direção da Samarco com uma possível ruptura era frequente. A mineradora chegou a cogitar comprar a área do vilarejo para remover seus moradores, mas sabia que a iniciativa era difícil, devido à resistência das pessoas em deixar a área. Em e-mail de 2011 apreendido pela Polícia Federal durante as investigações da tragédia, o então presidente da empresa, Ricardo Vescovi, afirma: "Não creio ser possível a hipótese considerada de compra de todo concentrado [vilarejo de Bento Rodrigues] para manter a Samarco operando: é mais fácil e rápido construir uma nova barragem do que isso acontecer". Quando Fundão ruiu, a empresa já estudava a construção de um novo reservatório.

Fundão: como foi pensada a barragem#

A Samarco levou adiante a construção da barragem mesmo com a existência de uma população imediatamente abaixo da estrutura.

Para armazenar os rejeitos, a mineradora optou pelo modelo de barragem a montante. Esse tipo de estrutura utiliza o próprio rejeito compactado na construção de sua parede de contenção. Primeiro, constrói-se um dique inicial, chamado de dique de partida. Em cima dele, vão sendo erguidos outros diques (como se fossem degraus que compõem uma escada) à medida que o reservatório vai sendo preenchido com rejeitos. A elevação, ou alteamento (nome técnico), acontece para dentro do reservatório. Esse modelo, entre todos os existentes, é considerado o menos seguro, pois a água presente nos rejeitos fica muito próxima da parede externa. De um lado, é o mais barato e rápido; de outro, é mais suscetível a rupturas e a tremores de terra.

Funcionamento de uma barragem a montante

O outro modelo possível, a jusante, é mais seguro porque os alteamentos (elevações de sua parede) são feitos para fora da barragem (o barramento que segura o material armazenado é mais resistente). Mas alguns fatores dificultam sua adoção: como ele utiliza mais material na construção dos diques, é muito mais caro. Também demora mais para ser erguido e precisa de mais espaço.

Funcionamento de uma barragem a jusante

Com o modelo escolhido pela Samarco, foram projetados dois diques para Fundão. O dique 1, abaixo do vale, recebeu rejeitos arenosos. Numa região logo acima dele, foi erguido o dique 2, para represar lama. A separação era fundamental para a segurança da barragem, pois a água (presente na lama) representa um risco para a estrutura: quanto mais distante, portanto, ela estiver da parede frontal do reservatório, mais seguro ele está.

O projeto de Fundão previa que o dique 1 encobrisse o 2. As barragens de rejeitos estão permanentemente em obras, porque são feitas em etapas, à medida em que recebem as areias e lamas. Com o tempo, o dique 1, de areia, iria crescer tanto que acabaria passando por cima do dique 2, de lama. A ideia era que o banco de areia que iria se formar no dique 1 de Fundão, na parte da frente da estrutura, seria suficiente para barrar a lama no fundo do reservatório.

Sendo assim, iria se formar uma praia, com a água ao fundo. Segundo o projeto, a praia mínima exigida deveria ter 200 metros, ou seja, a água ficaria a 200 metros de distância da frente da barragem. Se respeitada essa distância, a barragem estaria segura. Não seguir essa regra era considerada uma falha operacional grave, segundo o Manual de Operação do reservatório.

Distância

A barragem começou a ser construída em julho de 2007 na cota 790 metros (altura em relação ao nível do mar). O projeto original previa que ela fosse elevada até 920 metros, mas a Samarco já estudava aumentá-la mais ainda, até 940 metros, quando seria unificada com o reservatório vizinho, de Germano.

Ao se romper, em 5 de novembro de 2015, Fundão estava na cota 898 metros. A parte frontal da estrutura, ou seja, sua parede visível, tinha, portanto, 108 metros de altura, quase o tamanho do edifício Copan, em São Paulo, com seus 115 metros de altura, ou quase quatro vezes a estátua do Cristo Redentor, no Rio.

O sistema de drenagem interna#

A segurança da barragem dependia do controle da água dentro dela. Para captar o líquido presente nos rejeitos e escoá-lo para fora de Fundão, diminuindo assim os riscos da estrutura, foram projetados dois drenos no fundo da barragem, chamados de principal e secundário. Os drenos eram basicamente "caminhos" de pedras em camadas de diferentes tamanhos dentro do reservatório. A água que caía neles escorria para fora.

Mas Fundão também correria riscos com a água que se acumulava superficialmente na barragem, por causa das chuvas. Por isso, foram desenhadas duas galerias de concreto, que seriam instaladas no terreno inclinado, com bocas de captação de água para funcionar como ralos. À medida que o nível da barragem ia subindo, as entradas das galerias eram tampadas e substituídas pelas de cima. Toda a água captada pelos drenos e galerias eram jogadas para fora da barragem pela parte da frente.

Os problemas#

Drenos entupidos e erosão interna

A barragem de Fundão começou oficialmente a operar em dezembro de 2008. Apenas quatro meses depois, em 13 de abril de 2009, quando o reservatório do dique 1 estava na fase inicial de preenchimento com rejeitos, ocorreu um vazamento, próximo da saída do dreno principal. A Samarco interrompeu emergencialmente o lançamento, esvaziou o reservatório com bombeamento e construiu um aterro de blocos de pedra na frente do dique para controlar a infiltração.

Escavações foram feitas para investigar o que havia acontecido. Descobriu-se que o dreno tinha entupido devido ao uso de material não previsto no projeto. Como não passava água por ele, o líquido saiu sem controle, carregando o material que constituía a barragem de dentro para fora, num processo erosivo interno que é conhecido como "piping". O vazamento na frente da barragem tinha um metro de diâmetro.

A solução foi vedar os drenos (como os dois foram construídos na mesma época, considerou-se que ambos estariam comprometidos) e fazer um tapete para substituir a função das estruturas. O tapete era uma camada de brita e areia, de 120 metros de largura, na altura 826 metros (em relação ao nível do mar) do dique 1. A água presente nos rejeitos que chegasse ali seria descarregada por 27 tubos, em uma calha.

Como a recuperação do dique 1 e a obra para a construção do tapete demoraram um ano, e a Samarco não tinha outro local para depositar os rejeitos e não desejaria interromper sua produção, o que acarretaria prejuízos financeiros, ela construiu um dique interno, chamado de 1A, em maio de 2009. Ele serviria para isolar a área de trabalho do dique 1 e armazenar rejeitos oriundos do processo de produção.

Entretanto, o dique 1A estava muito perto do dique 1 (apenas 120 metros separavam um do outro). Como ele recebeu lama e seu nível de água ficou elevado, criou-se uma situação de risco (o projeto pedia distância mínima de 200 metros da água no fundo até a parede principal de Fundão). Com muita água, que acarretou elevação de pressão, foi necessário construir um reforço com blocos de pedra para evitar que o dique 1A caísse.

Em abril de 2010, o tapete já estava pronto, Fundão retomou sua operação e a estrutura começou a crescer.

Galeria principal

Mas três meses depois, em julho de 2010, a Samarco percebeu que a galeria principal, a tubulação que escoaria as águas superficiais para fora da barragem, encheu-se de rejeitos. O lançamento em Fundão foi novamente interrompido.

Outra investigação feita pela empresa no interior da barragem descobriu que juntas se abriram na estrutura e permitiram a passagem do material para dentro da galeria. O problema foi causado por erros de construção. Alguns trechos tinham sido feitos até 20 metros fora do lugar planejado.

Já que a galeria principal ficou inutilizada, para que as águas superficiais do dique 2 pudessem ser escoadas, optou-se em agosto de 2010 por abrir, na parte de cima da estrutura, um canal ligando os dois reservatórios, para a passagem da lama do dique 2  para o 1. Assim, a galeria secundária poderia ser utilizada enquanto a principal era tratada.

Para isolar a área que teria de ser escavada para se chegar ao problema na galeria principal, a Samarco criou o Novo Dique 1A. Em 27 de janeiro de 2011, esse dique se rompeu, devido à existência de camadas de lama entre a areia.

A solução encontrada pela Samarco foi tampar a galeria principal na lateral direita e criar na borda da barragem um novo sistema para extravasar a água, chamado de sistema auxiliar. Consistia de tubos de PEAD (polietileno de alta densidade, uma resina com alta resistência ao impacto) com 1,2 metros de diâmetro passando pela lateral, ou ombreira (nome técnico) direita de Fundão. Esse sistema levaria o líquido para fora da barragem.

A pilha da Vale

Ao lado de Fundão, existia uma estrutura chamada pilha de estéril (um amontoado de minerais sem uso ou valor econômico) da Vale. As águas das chuvas que caíam sobre ela escorriam para a lateral esquerda da barragem da Samarco, o que interferia em sua estabilidade. Um lago chegou a se formar no pé da pilha. Houve vários vazamentos de água na lateral da barragem. Esse problema foi identificado ainda em 2012.

Desde 2005, o Estudo de Impacto Ambiental já reconhecia que isso iria ocorrer. "Nas cotas mais superiores, a partir da elevação 880 m, poderá haver interferência com o pé de uma pilha de estéril já implantada", afirma trecho do documento. O relatório propunha que, quando a interferência de uma estrutura na outra fosse observada, a Samarco e a Vale teriam de pensar juntas numa solução.

Para resolver o problema da água que vinha da pilha da Vale, a empresa precisava de espaço para as obras. Por isso, modificou a geometria da barragem. Ela recuou a parede de Fundão para dentro do reservatório, a fim de ter espaço suficiente para realizar as intervenções. Em abril de 2013, foi feita uma drenagem da água no pé da estrutura da Vale: um dreno conduziria o líquido para fora do reservatório da Samarco. Em agosto de 2014, a mineradora tirou toda a água do pé da estrutura da Vale e preencheu o local com rejeito arenoso.

O recuo

Além de estar ligado à pilha da Vale, o recuo também foi aberto por causa da drenagem deficiente na lateral do reservatório. As duas coisas foram percebidas na mesma época. Em setembro de 2012, a mineradora considerou que a galeria secundária, no lado esquerdo de Fundão, não estava suficientemente dimensionada para o volume de rejeitos que a barragem receberia.

Para resolver os problemas de drenagem no local, agravados pela água oriunda da pilha da Vale, a Samarco recuou em outubro daquele ano a parede da barragem no canto esquerdo, em 80 metros. A parede do reservatório, então em linhas retas (como era previsto em seu projeto original), formou um desenho parecido com um "S". O recuo servia para abrir espaço para obras na galeria secundária e para a drenagem do pé da pilha vizinha. O platô do recuo era como uma praça, um canteiro de obras. Durante as investigações, os diretores da Samarco afirmaram que o recuo foi feito sem projeto.

Em novembro de 2012,  houve a abertura de um buraco em cima da galeria secundária, vazamentos e carregamento de rejeitos de dentro para fora da estrutura. Fundão estava com 860 metros (em relação ao nível do mar). No mês seguinte, o recuo avançou mais 70 metros para dentro do reservatório, totalizando 150 metros sobre a lama. A medida desrespeitava novamente a exigência do projeto para que a praia mínima tivesse 200 metros (a distância era necessária para manter a água presente na lama distante da frente de Fundão).

Em 2013, a Samarco resolveu concretar as galerias e abandoná-las definitivamente. A solução seria fazer dois tapetes drenantes no cantos da barragem.

As trincas

As investigações da Polícia Federal descobriram um momento chave na história da barragem: setembro de 2014. Naquele mês, o engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila, projetista da barragem de Fundão até 2012, vistoriou a estrutura, já na condição de consultor da Samarco, e identificou trincas no recuo do reservatório. Seu depoimento mostrou à PF que indícios de rupturas já existiam um ano antes da tragédia e que a Samarco tinha ciência dos riscos de a barragem ruir.

As trincas transversais tinham surgido em agosto de 2014, segundo a empresa informou ao engenheiro. Em depoimento à PF, Ávila afirmou ter interpretado as trincas como um "princípio de ruptura" por liquefação (quando o material da barragem, por estar muito encharcado de água, passa do estado sólido para o líquido, o que pode fazê-la se romper).

Ele recomendou redimensionar um reforço que já existia no local, instalar no recuo ao menos nove piezômetros (equipamentos para medir a pressão da água no solo) e acompanhar diariamente a posição da água na barragem. Caso a pressão subisse naquele ponto, a Samarco deveria bombear a água para fora, rebaixando o nível 20 metros abaixo do solo.

Até então, não havia nenhum instrumento de monitoramento no recuo, segundo depoimento do engenheiro. A Samarco alega que Ávila nunca alertou a empresa em um tom que sugerisse que algo grave estivesse ocorrendo, afirma que instalou 12 piezômetros no local (mais do que o solicitado) e que cumpriu todas as recomendações feitas pelo engenheiro.

O problema das trincas foi tratado internamente numa troca de mensagens de diretores da Samarco. As conversas foram encontradas pela Polícia Federal durante operação de busca e apreensão na empresa.

Em 29 de agosto de 2014, o então presidente da Samarco, Ricardo Vescovi, é avisado pelo diretor de operações, Kleber Terra, da existência das trincas:

Kleber Terra

15:56 – “Em Fundão apareceram umas trincas no maciço onde desviamos o eixo… nada sério, mas requer intervenção para contenção do avanço.”

Ricardo Vescovi

15:59 – “O quê??? Ai, ai, ai…
Fica esperto.”

Kleber Terra

15:59 – “Tá controlado…”

Ricardo Vescovi

15:59 – “Que tipo de trinca? Só no maciço ou conecta com o interior da barragem?”

Kleber Terra

16:00 – “Só no maciço. O ITRB [painel internacional de engenheiros que sugeria medidas a serem tomadas pela Samarco] na última reunião já havia falado que teremos de fazer uma drenagem intermediária no maciço.
Com o alargamento da boca do vale o tapete drenante anterior não pega todo o maciço no topo…
E todas as obras para a contingência de Germano estão finalizadas…”

Ricardo Vescovi

16:02 – “Entendi.”

A Samarco contava com um grupo externo de engenheiros independentes, chamado de ITRB (Independent Tailings Review Board) que revia projetos e aconselhava a empresa sobre quais decisões tomar. Para esses profissionais, o recuo não deveria existir, por ser muito perigoso. Ele deveria ser preenchido o mais rápido possível com rejeitos arenosos, para Fundão voltar ao desenho do projeto original.

O problema do recuo era que os "degraus" da barragem começaram a ser feitos sobre a lama, e a distância de 200 metros que deveria existir entre a frente da barragem e a área de fundo, onde a lama era depositada, encurtava de forma perigosa. Ao todo, seis elevações da parede da barragem (alteamentos) foram feitas na região do recuo, o que demonstra que a Samarco continuou aumentando a barragem mesmo que nela existisse um fator que a colocasse em risco. Isso também significa que mais peso foi colocado sobre a lama.

Em outubro de 2014, a Samarco chegou a elaborar um projeto de preenchimento da região, que duraria 11 meses, mas ele não foi levado adiante. Dependendo do material a ser usado para tapar o recuo, o custo da obra poderia variar de R$ 4 milhões a R$ 40 milhões.

Ainda no recuo, como a galeria secundária, que drenava as águas na estrutura, deixou de ser utilizada em 2013, a Samarco começou a fazer naquela região um tapete drenante, com pedras, pois as laterais de Fundão estavam sem drenagem. Essas obras também atrasaram o preenchimento do recuo e o retorno do eixo em “S” ao desenho original (reto).

O que contribuiu para a ruptura#

Crescimento acelerado

Segundo engenheiros que estudam barragens de rejeitos, é recomendável que uma estrutura como Fundão cresça, de forma segura, de 4,57 a 9,14 metros por ano. A conclusão é feita com base em empreendimentos bem-sucedidos. A elevação da parede do reservatório da Samarco que ruiu em 2015 foi elevado, em média, em 13 metros por ano.

Apenas na região do recuo, onde houve a ruptura, a barragem cresceu da cota 875 m para 898 m (ou seja, aumentou 23 metros) em três meses, de setembro a novembro de 2015.

Para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, a estrutura, que apresentava um histórico grande de problemas, cresceu muito rápido, tendo a empresa assumido o risco de que ela pudesse se romper.

Monitoramento falho

Para controlar a água na barragem, a Samarco instalava medidores de nível d'água e piezômetros (equipamentos que medem a pressão da água no solo). Fundão possuía cerca de 70 aparelhos, entre manuais e eletrônicos, que transmitiam os dados por uma rede sem fio. Em depoimentos à Polícia Federal, os responsáveis pelo monitoramento da estrutura não souberam sequer esclarecer qual era a proporção de manuais e eletrônicos.

Mesmo os equipamentos eletrônicos eram lidos manualmente, porque os dados transmitidos por rede sem fio possuíam inconsistência. Nos dez dias que antecederam a tragédia, nenhuma leitura manual foi feita por funcionários da Samarco. À PF eles não explicaram os motivos. Nos dias 3, 4 e 5 do mês da tragédia (Fundão ruiu em 5 de novembro), os equipamentos eletrônicos estavam desligados, passando por manutenção, devido a uma interferência no sistema de transmissão de uma obra que estava sendo realizada na barragem.

Os tremores

Investigações das Polícia Civil e Federal e do Ministério Público do Estado de Minas descartaram os tremores de terra na região como causa da tragédia. Uma apuração feita por um escritório internacional contratado pela Samarco e por suas controladoras considera, entretanto, que os sismos podem ter sido o gatilho para o desastre.

Seis tremores de terra foram registrados na região da barragem entre as 13h e as 16h do dia da tragédia, pelas estações da Rede Sismográfica Brasileira, segundo dados do Centro de Sismologia da USP. Os mais significativos ocorreram na sequência, às 14h12 e às 14h13, de 2,4 e 2,6 pontos na escala Richter, respectivamente. Eles foram sentidos por funcionários da Samarco, cerca de uma hora e meia antes do desastre. Vistorias foram feitas na barragem pela empresa, logo após os sismos, mas nenhuma anomalia foi identificada.

Segundo o Centro de Sismologia da USP, tremores iguais ou menores do que 3 pontos não causam danos em construções e são sentidos apenas levemente. Eles ocorrem praticamente todos os dias no Brasil, segundo relatório feito pelo órgão.

Mas a Samarco, em suas próprias apurações, admite que Fundão não se encontrava em boas condições de segurança e que, numa estrutura com tantos problemas, os sismos poderiam ter desencadeado a ruptura.

Evolução da lama e falha na drenagem#

A Vale, dona da Samarco, possui atividades no mesmo complexo em Mariana, e também lançava lama em Fundão, embora isso não fosse informado às autoridades fiscalizadoras.

Desde 1989, existia um contrato em que a Samarco dava permissão para que suas controladoras utilizassem suas barragens. Em maio de 2010, mais de um ano após o início de operação de Fundão, um Termo de Acordo para Disposição de Rejeitos, com o mesmo teor do documento anterior, foi assinado pelas duas empresas, estendendo a vigência do primeiro contrato. Nesse termo, a Samarco autorizava a Vale a jogar lama em suas barragens (Germano e Fundão).

O excesso de lama na barragem, porém, não foi controlado, como mostraram as investigações da PF. Devido aos problemas nos sistemas de drenagem projetados originalmente (como os drenos de fundo e as galerias, que tiveram de ser abandonados devido ao mau funcionamento), uma mancha de lama evoluiu dentro do reservatório sem que a água presente nos rejeitos fosse adequadamente controlada. O líquido se aproximou excessivamente da parede de contenção da estrutura. O recuo, que fez Fundão crescer sobre a lama, pressionou então a lama que estava embaixo, fazendo-a ser expelida para fora. A ruptura ocorreu em quatro fases. 

As quatro etapas da ruptura#

Em 5 de novembro de 2015, Fundão ruiu abruptamente, segundo os trabalhadores que viram a tragédia. Os engenheiros contratados pela Samarco para investigar o caso afirmam que a ruptura ocorreu em quatro etapas, de forma rápida, na sequência descrita abaixo:

Água suja

Foi o primeiro sinal de que algo estava errado. No recuo, foi observado no dia da tragédia um acúmulo de água suja, o que demonstrava que o líquido estava saindo do interior da barragem levando consigo, para fora, o material do reservatório. Era um indício de rompimento. Vazamentos são corriqueiros em barragens, mas causam menos preocupação quando a água é limpa (o que demonstra que sua estrutura está preservada).

Deslocamento do platô

Segundo as testemunhas que estavam na barragem no momento da tragédia, o primeiro movimento foi um deslocamento do platô do recuo (área livre que servia como canteiro de obras) para a frente, num primeiro sinal de que a barragem estava caindo.

Onda

O terceiro movimento, ainda segundo as testemunhas, foi o surgimento de uma onda, de baixo para cima, de material saído de dentro da barragem. Como a região estava muito encharcada, ela perdeu resistência, e o material sólido transformou-se em líquido.

Ruptura

A barragem quebra na cota 875 m (altura em relação ao nível o mar) e todo o material vaza da estrutura. A explicação é que houve uma carga sobre a lama na região do recuo e o material foi jogado para fora da barragem da mesma forma como acontece, por exemplo, com uma pasta de dente no momento em que se pressiona a bisnaga onde ela está armazenada: o creme dental é expelido para fora.

As testemunhas#

A Polícia Federal e o Ministério Público Federal se basearam no depoimento de três testemunhas que estavam no local do desastre para concluir que a barragem de Fundão se rompeu dessa forma no recuo: Romeu Arlindo dos Anjos, técnico em infraestrutura da Samarco que trabalhava na operação da barragem, Anderson Henrique de Andrade Rigobello, da prestadora de serviços Integral Engenharia, encarregado geral da terraplanagem, e Vicente de Paula Furtado, topógrafo da terceirizada ERG Engenharia.

Romeu

Romeu tomou um jato de lama, ficou rodando em redemoinho e se agarrou a um galho de árvore. Ele chegou a afundar uma vez e a engolir lama. O barulho era ensurdecedor, descreveu

Leia o depoimento completo da testemunha

Anderson

Quando Anderson desceu do caminhão pipa, olhou no sentido da barragem e viu que a parte do recuo da ombreira esquerda cedeu. O pé deslizou e veio puxando os demais. Ele viu que o rompimento partiu dali

Leia o depoimento completo da testemunha

Vicente

A caminhonete de Vicente foi atingida pela lama, chegou a amassar o lado do motorista, no farol e a porta, impedindo até que fosse aberta. Somente depois de forçá-la conseguiu sair

Leia o depoimento completo da testemunha

O tamanho do estrago#

Quando Fundão se rompeu em Mariana, moradores distantes da barragem não imaginaram que a onda de lama liberada pudesse atingi-los horas ou dias depois. Em Barra Longa, cidade com 5.710 habitantes a cerca de 40 km em linha reta da barragem, os rejeitos invadiram as casas até o teto às 4h da madrugada do dia seguinte ao desastre.

O avanço da mancha começou a preocupar os municípios cortados pelo rio Doce. Antes mesmo de ser afetado, o Estado do Espírito Santo pediu doações de água mineral para cidades como Baixo Guandu, Colatina e Linhares.

Ao menos 20 comunidades em Minas e no Espírito Santo, onde vivem cerca de 1 milhão de pessoas, foram de alguma forma afetadas pelo rompimento de Fundão. Na Justiça, houve uma enxurrada de processos. Apenas em Governador Valadares, 35 mil pessoas moveram ações por danos morais contra a Samarco. O mesmo ocorreu em outros municípios, como Colatina (ES), com 17.500 processos. A mineradora deve buscar conciliações nesses casos.

Há ainda uma ação coletiva, ainda não julgada, que representa 3.500 pescadores do rio Doce. Parte deles tem recebido ajuda da empresa.

Segundo a Samarco, já foram distribuídos para as vítimas 7.761 cartões de auxílio-financeiro, carregados mensalmente com o valor de um salário mínimo (R$ 880). Há pagamento de 20% a mais por dependente e distribuição de cestas básicas.

Os desabrigados dos três vilarejos mais afetados (Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira), realocados desde o ano passado em casas alugadas, já escolheram as áreas onde a reconstrução das novas moradias ocorrerá, embora ainda não haja data para isso.

A pesca continua interrompida por tempo indeterminado no rio Doce, pois, de acordo com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), ainda há índices elevados de contaminação por metal nos peixes.

Já sobre a revitalização do rio, a Samarco afirma que vem tomando medidas como a remoção dos rejeitos, a recuperação das vegetações e do traçado dos cursos d'água, além da contenção da lama que ainda pode vazar.

Como a Samarco tenta parar a lama que restou#

Fundão tinha 55 bilhões de litros de rejeitos de minério quando ruiu. Mas nem todo o volume que era armazenado na estrutura vazou no desastre: 23 bilhões de litros continuaram dentro da barragem. O problema, atualmente, é que o material pode ser levado para fora com as chuvas.

Por isso, a Samarco está construindo diques próximos do vilarejo de Bento Rodrigues para tentar conter os rejeitos que ainda podem escoar de Fundão e chegar aos rios. A situação pode se agravar, segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), durante o período chuvoso, que começou em outubro e segue até março de 2017.

A mineradora, inicialmente, projetou quatro diques e construiu os três primeiros. O terceiro, mais distante da barragem e perto de Bento Rodrigues, era o único que conseguia segurar com mais eficácia parte da lama. Mas o material ainda vazava. A Samarco havia projetado um quarto, depois do vilarejo, só que sua construção tinha sido impedida porque a obra encobriria muros com valor histórico reconhecido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Moradores se opõem à obra porque ela irá alagar o que sobrou de Bento Rodrigues.

No dia 21 de setembro de 2016, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), assinou um decreto autorizando o uso da área para a construção do quarto dique.

Até julho de 2016, a Samarco havia realizado apenas metade das ações para conter o avanço dos rejeitos, segundo o Ibama. Por não cumprir a exigência de conter a lama até o terceiro dique, no prazo do dia 15 de setembro, o instituto aplicou, segundo decisão publicada no dia 4 de novembro, multa de R$ 500 mil por dia à mineradora. A Samarco afirma que está ampliando a estrutura, para que ela seja mais eficiente.

Reportagem por Estêvão Bertoni

Produzido por Estêvão Bertoni e Murilo Roncolato

Layout por Rodolfo Almeida

Infográficos por Catarina Pignato, Rodolfo Almeida e Guilherme Falcão

Desenvolvimento por Ariel Tonglet

Timelapses por Ariel Tonglet

© 2016 Nexo Jornal

As imagens de sobrevoo usadas nos timelapses são de autoria do Ibama e publicadas em sua página dedicada ao acidente. As imagens apresentadas ao longo do material são reproduções de documentos apreendidos pela Polícia Federal.