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ESPECIAL

As revoluções russas

Por Camilo Rocha, Guilherme Falcão, Thiago Quadros e Ariel Tonglet em 26 de outubro de 2017

“Refaçam tudo. Organizem-na de modo que tudo seja feito novo, para que nossa vida falsa, suja, chata e feia se torne justa, limpa, feliz e linda”, escreveu o poeta russo Alexander Blok em 1918. A ideia de ruptura radical – e recomeço – está no âmago da Revolução Russa, um dos eventos definidores do século 20. Nas artes e na cultura aconteceu o mesmo. A ideia de zerar o passado para erguer novos e melhores modelos de indivíduo e sociedade é central nas vanguardas russas e, em especial, na corrente conhecida como construtivismo.

Iniciada em fevereiro (março, segundo o calendário gregoriano) de 1917 com a troca do regime do czar Nicolau II por um governo socialista provisório, a revolução resultou na ascensão ao poder do grupo bolchevique liderado por Vladimir Lênin em outubro (ou novembro, pela marcação gregoriana). Nesse contexto, diversos artistas russos, incluindo nomes que já tinham projeção no país, como o poeta e escritor Vladimir Maiakóvski e o pintor Kazimir Malevich, aderiram com entusiasmo ao novo regime e a seu projeto de sociedade, enxergando na revolução um paralelo com suas próprias inovações.

“Estes artistas vão tentar pensar em como a arte pode responder essa demanda de construção de uma nova sociedade”, afirmou ao Nexo a fotógrafa e pesquisadora Clara Figueiredo.  Em ensaio que compõe o livro “1917, o ano que abalou o mundo”, Figueiredo escreve: “Não mais caberia a arte e aos artistas o papel de representar a vida, mas o de atuar nela, de construí-la. Daí a origem do nome construtivismo, que enfatiza a dimensão material da arte, a construção em oposição à composição”.

A partir daí, vieram experimentos radicais de linguagem e forma, a rejeição a expressões consideradas “mortas”, como a pintura, e a noção de que artistas deveriam gerar produtos com utilidade social.

Um ponto focal dessa movimentação foi a entidade artística Proletkult (de cultura proletária), que reuniu artistas e pessoas ligadas à cultura em todo o país com o objetivo de criar e fomentar linguagens não burguesas, de trabalhadores para trabalhadores.

Abaixo o Nexo analisa as especificidades técnicas e o contexto de oito trabalhos simbólicos por revolucionar, na forma e no conteúdo, diferentes campos de expressões: arquitetura, cinema, teatro, música, literatura, pintura, design gráfico e fotografia. São trabalhos de artistas que, por vezes, colaboravam e discutiam entre si. E que, em geral, acabaram sendo desprestigiados ou eliminados a partir da década de 1930, sob a visão mais conservadora da era Stálin.

Pintura

Kazimir Malevich

O quadrado preto, 1915

Em meio às muitas novas propostas de pintura do modernismo do início do século 20, como o cubismo de Picasso e o abstracionismo de Kandinski, Kazimir Malevich foi mais longe na busca por uma arte que estivesse livre de obrigações com a realidade ou a representação. Em 1915, inaugurou em São Petersburgo a exposição “A última exibição futurista de pinturas 0.10” (em tradução livre), em que foram mostrados 36 trabalhos, dele e de outros 13 artistas de estilo similar. Na mostra, os quadros ficaram espalhados de modo irregular pelas paredes, alguns em cantos perto do teto.

Entre estes posicionados de modo pouco usual para um museu, estava o “Quadrado negro”. A obra é exatamente o que diz o nome: um quadrado negro margeado por uma borda branca. “Acredita-se em geral que foi a primeira vez que alguém fez uma obra que não era sobre alguma coisa”, explicou a curadoria do museu britânico Tate Modern, em texto de 2014 para uma exibição sobre o pintor.

A obra ficou conhecida como o trabalho inaugural do suprematismo, movimento de arte abstrata que se colocava como superior às outras correntes por aderir à “forma pura”. Ao pintar apenas formas geométricas, buscando um abstracionismo radical, o suprematismo acreditava estar instigando uma pureza de sentimento e percepção no olhar, sem qualquer influência ou referência para servir de apoio.

A mostra “A última exibição futurista de pinturas 0.10”, realizada em São Petersburgo, em 1915, apresentou o “Quadrado Negro”, de Kazimir Malevich. Ele foi pendurado em um lugar inusitado: um canto perto do teto.

O extremismo de “Quadrado negro” não veio de cara. Exames de raio-X feitos em tempos mais recentes revelaram que a tela recebeu outras inscrições inicialmente. Por baixo da tinta preta, havia contornos de um cavalo e palavras. Isso indica que, até chegar no preto total, houve um processo com outras etapas. Malevich pintaria outros três quadrados negros até o fim da década de 1920. O original encontra-se hoje em estado tão frágil que não pode deixar a galeria Tretyakov, em Moscou, onde fica guardado.

A pintura logo deixou de merecer a atenção de Malevich, que logo se juntou aos contemporâneos vanguardistas que viam a pintura como algo morto e ligado à velha ordem burguesa que havia colapsado com a revolução de 1917. Na década de 1920, o artista passou a se dedicar a trabalhos de design gráfico para pôsteres e publicações, entre outros.

“Para o suprematista, os fenômenos visuais do mundo objetivo são desprovidos de sentido em si mesmos; o que é significativo é a sensação...o suprematista não observa e não toca, ele sente”
– Kazimir Malevich

O “Círculo negro” foi realizado por Malevich na mesma época que o “Quadrado”. O artista queria libertar a arte do “lastro do mundo objetivo”. A “Cruz negra” foi pintada por Malevich na década de 1920, quando o artista estava mais envolvido com composição e layout gráfico para pôsteres. Já “Branco no Branco” é mais um exemplo da estética suprematista, que tinha como proposta um abstracionismo levado ao extremo.

Há muitas relações de Malevich com outros protagonistas da vanguarda russa desse tempo. O pintor teve como discípulo na escola suprematista El Lissitzky, mais tarde conhecido por suas inovações gráficas nos cartazes de estética construtivista. Malevich também contribuiu com os cenários para a primeira peça de Vsévolod Meyerhold na era soviética, “Mistério-bufo”, cujo texto era de Vladimir Maiakóvski.

Com a morte de Lênin, em 1924, Malevich se preocupou com a mudança do clima político. O artista, desde sempre um colaborador da revolução bolchevique, não estava errado: o regime stalinista subiu o tom em relação à arte abstrata e aos trabalhos vanguardistas em geral, às vezes chamados de “depravados”. Depois de sua morte, vítima do câncer, em 1935, o governo soviético tirou seus trabalhos de circulação. Só em 1981 suas obras voltaram a ser mostradas na Rússia.

Malevich pintaria outros três quadrados negros até o fim da década de 1920. O original encontra-se hoje em estado tão frágil que não pode deixar a galeria Tretyakov, em Moscou, onde fica guardado.

Cinema

Serguei Eisenstein

O Encouraçado Potemkin, 1925

Em 1905, o navio de guerra Potemkin foi palco de uma rebelião de marinheiros. A embarcação retornava da Guerra Russo-Japonesa quando a tripulação revoltou-se contra as más condições a bordo. Vinte anos depois, Lênin quis marcar com um filme o aniversário do evento considerado o “ensaio geral” para a Revolução de 1917. “Os soviéticos viam o cinema como arma para revolução”, disse ao Nexo Adilson Mendes, professor e pesquisador da história do cinema. Graças à inexistência de registros filmados próprios, inclusive da própria revolução, as autoridades consideravam importante promover a apropriação da memória, recriando, por meio de um filme, o momento da gênese da revolução.

“Por que deveria o cinema seguir as formas do teatro e da pintura em vez da metodologia da linguagem, que permite o surgimento de ideias totalmente novas a partir da combinação de dois sentidos concretos de dois objetos concretos?”
– Serguei Eisenstein

Filmes eram valiosas peças na hora de expressar os sentimentos e ideias da nova era, mas não só. Eram também vistos como ferramentas na construção de uma nova sociedade e de um novo sujeito, mais crítico e engajado.

Para a empreitada, Lênin convidou Serguei Eisenstein, jovem cineasta que já era bem visto no governo por seu “A Greve” (1925), sobre operários que param de trabalhar depois que um colega se suicida ao ser acusado de roubo. Discípulo do diretor e dramaturgo teatral Vsévolov Meyerhold, Eisenstein tinha um ótimo trânsito entre a vanguarda artística russa.

Eisenstein formulou sua própria teoria da montagem, em que a combinação de takes podia mexer com as emoções do espectador de maneira muito eficiente e direcionada.

O resultado foi um filme que até hoje figura entre as obras mais importantes da história do cinema, quase uma unanimidade na crítica. Eisenstein fundiu as ideias de cinema narrativo do diretor americano D.W. Griffith, autor do filme “Intolerância” (1916), com procedimentos trazidos do teatro e da pintura de vanguarda. “Trata-se de uma reconstrução da realidade que não segue os princípios tradicionais do cinema narrativo e se empenha em inventar nova linguagem para um novo momento histórico”, explicou Mendes.

Essa nova linguagem manifesta-se principalmente por meio da abordagem do cineasta na edição do filme. Para Eisenstein, era nesse processo, mais do que nas imagens em si, que a história e significado do filme se produziam. Eisenstein formulou sua própria teoria da montagem, em que a combinação de takes podia mexer com as emoções do espectador de maneira muito eficiente e direcionada.

O diretor elencou cinco tipos de montagem. Sua cena mais famosa, a do carrinho de bebê que desce desgovernado por uma escadaria em Odessa, na atual Ucrânia, é um exemplo de montagem “tonal”, em que takes de diferentes “tonalidades” (de luz e de enquadramento) combinados expressam a ideia e o clima de uma sequência.

Em outra cena, as imagens se intercalam entre um religioso manuseando um crucifixo e um militar fazendo movimento parecido em sua espada. Aqui estava em funcionamento o que Eisenstein chamava de montagem “intelectual” ou “ideológica”, em que não se apelava para as emoções do espectador, mas se investia na transmissão de uma ideia, que, no caso, era a associação corrompida entre Igreja e o Estado czarista.

“Potemkin” teve êxito entre as plateias soviéticas na época do lançamento, em 1925, mas não foi unanimidade entre as classes política e artística russas. Uma queixa comum era de que a produção era formalista, exageradamente voltada para aspectos técnicos. Entretanto, o filme foi um sucesso internacional, angariando admiradores pelo Ocidente. Isso reabilitou seu prestígio interno. A partir daí, o filme voltou acolhido pelas autoridades soviéticas e foi reexibido com sucesso no país.

Literatura

Vladimir Maiakóvski

A Plenos Pulmões, 1929

Muito antes da Revolução Russa de 1917, Vladimir Maiakóvski já era um engajado bolchevique. Ainda garoto, distribuía panfletos revolucionários e participava de atividades políticas. Seu ativismo já tinha o levado à prisão três vezes antes de completar 15 anos. Na prisão, começou a escrever poesia. Aos 19, contribuiu com dois poemas ao manifesto “Um tapa na cara do gosto do público”, organizado pelos futuristas russos.

Na década de 1920, Maiakóvski escreveu para publicações como a revista Novyi LEF, em que trabalhou ao lado de outros artistas da vanguarda russa, como o fotógrafo Alexander Rodchenko e do cineasta Serguei Eisenstein.

Na década de 1920, Maiakóvski escreveu para diversas publicações soviéticas. A mais significativa foi a revista Novyi LEF (Frente de esquerda, em tradução livre), em que trabalhou ao lado do fotógrafo Alexander Rodchenko e do cineasta Serguei Einsenstein. O autor teve vários textos teatrais encenados pelo diretor Vsevolov Meyerhold durante esse período.

Maiakóvski foi o poeta revolucionário por excelência. “Ele entrou na revolução como se estivesse entrando em casa”, disse o escritor Viktor Chklovsky. Em “A plenos pulmões”, seu último grande poema, o autor faz uma celebração da essência do comunismo. Nos versos, Maiakóvski escreve que trabalhos como “limpador de latrina e carregador de água”, que a revolução lhe proporcionou, o salvaram da futilidade banal da poesia lírica de antes.

Publicado em 1930, época em que a truculência repressiva da era Stálin já mostrava seu rosto, os versos reafirmam o poder da ideologia e da utopia em face das mudanças indesejadas: “Meu verso irá ultrapassar os picos das era muito além das cabeças de poetas e governos”. Este trecho foi chamado pelo poeta americano Allen Ginsberg de uma das declarações mais “heroicas e poderosas” do século 20.

A poesia de Maiakóvski se caracterizou por ignorar convenções métricas, com quebras de frases pouco convencionais, uso de termos hiperbólicos, metáforas expressivas e palavreado coloquial, mesmo palavrões. Em “A plenos pulmões”, o poeta se comunica por meio de diversas vozes alternantes, praticamente uma diferente a cada verso, indo do satírico ao realista, do idealista ao confessional à medida que avança.

“O poema possui grande poder de linguagem e imagem, e seu propósito ideológico não deveria esconder de nós a qualidade do trabalho”, escreveu Edward J. Brown, especialista em literatura russa, autor de “Mayakovsky: A poet in the revolution”.

“A arte não pode ficar concentrada em santuários mortos chamados museus. Ela precisa ser espalhada por toda parte – nas ruas, nos bondes, fábricas, oficinas e nas casas dos trabalhadores.”
– Vladimir Maiakóvski

Maiakóvski se matou com um tiro em seu apartamento em 1930, atormentado por questões pessoais e se sentindo perseguido pela crescente vigilância em cima da produção cultural. Em 1935, Stálin, afirmou que Maiakóvski era “o melhor e mais talentoso poeta da nossa era soviética”.

Design

El Lissitzky

Vença os brancos com a cunha vermelha, 1919

Quando se fala em “construtivismo russo”, uma das associações mais corriqueiras são aos cartazes de propaganda, com slogans exaltados e estética geométrica. Principal mídia do regime bolchevique, com poder de alcance e baixo custo de produção, os cartazes contaram com inúmeros artistas envolvidos em sua produção. Entre eles, El Lissitzky (nascido Lazar Markovich Lisitskii) é um dos nomes mais representativos.

Formado em engenharia e arquitetura, Lissitzky foi convidado pelo pintor Marc Chagall para ensinar arquitetura, artes gráficas e impressão no Instituto de Arte Popular de Vitebsk, Belarus, em 1919. Na instituição, o artista conheceu Kazimir Malevich, sendo fortemente influenciado pelas suas ideias de uma arte não representativa. Lissitzky decidiu se aventurar na pintura e no desenho, fundando sua própria linha de abstracionismo, chamada Proun (projeto para a afirmação do novo, em tradução livre).

Em pouco tempo, o artista começou a realizar trabalhos de propaganda no coletivo suprematista Unovis, desenhando posters com o objetivo de encorajar trabalhadores e estimular judeus, como ele, a apoiar o regime bolchevique. El Lissitzky estava entre os que declararam naquele momento a morte da pintura. Ele voltou-se para a tipografia e as artes gráficas, que via como muito mais adequadas à realização da missão utilitária e funcional do construtivismo. Ao privilegiar formas geométricas, o artista trouxe as referências do suprematismo para materiais do dia a dia, além de dar um novo uso para seu repertório de arquiteto.

A “cunha” ou triângulo vermelho simboliza o Exército Vermelho, como eram conhecidas as forças revolucionárias bolcheviques. As formas com ângulos agudos representam no suprematismo a novidade e a mudança.

Os pequenos triângulos e cunhas vermelhas representam os exércitos e grupos menores que lutavam pela revolução no território russo. A linguagem visual utilizada por Lissistzky remete às formas usadas em mapas de guerra

O círculo branco representa o Exército Branco no contexto político da Revolução Russa, composta por monarquistas, conservadores e liberais que se opunham às forças bolcheviques. Na tradição suprematista, o círculo é o símbolo do permanente, do que não muda

“vence os brancos”

“com a cunha vermelha”

O pôster “Vence os brancos com a cunha vermelha”, a forma triangular da cunha representa os bolcheviques, que atacam e vencem seus adversários, os “brancos” (conservadores, religiosos e socialistas antibolcheviques) que disputavam o poder na guerra civil que aconteceu na Rússia entre 1917 e 1922. Alguns elementos gráficos menores flutuam pelo desenho, conferindo uma impressão de movimento.

“Como um todo, além de ser um trabalho de propaganda política, o pôster apresenta uma função estética assumida. Seus grafismos simples transmitem um excesso de significado. O efeito estético provocado pelas formas geométricas puras realça o efeito ideológico da declaração escrita, e vice-versa. A imagem e a narrativa existem em dois espaços distintos. Elas meramente se interseccionam, produzindo em nossa percepção não um efeito unificado, mas uma impressão dupla ou paralela – um efeito binário”, escreveu o filósofo esloveno Aleš Erjavec, em “Postmodernism and the Postsocialist Condition” (pós-modernismo e a condição pós-socialista, em tradução livre).

“O artista constrói um novo símbolo com seu pincel. Este símbolo não é uma forma reconhecível de qualquer coisa que já esteja acabada, já feita, já existente no mundo – é o símbolo de um novo mundo, sobre o qual estamos construindo e que existe por meio das pessoas.”
– El Lissitzy

Em 1921, Lissitzky tornou-se embaixador cultural da Rússia na Alemanha. Pelos anos seguintes, realizaria exposições e colaborações com artistas alemães, incluindo personagens ligados aos movimentos Bauhaus e De Stijl. Dois anos depois, ele realizou com Maiakóvski um radical experimento de texto com arte tipográfica no livro chamado “Dlya golosa” (para a voz, em tradução livre).

Arquitetura

Vladimir Tátlin

Torre de Tátlin, 1919

Segundo o plano, a Torre de Tátlin seria um imponente acréscimo à paisagem de Petrogrado (o nome que a cidade de São Petersburgo teve entre 1914 e 1924; seria Leningrado entre até 1991). A estrutura deveria ter 400 metros de altura, 100 a mais que a Torre Eiffel, então a construção mais alta do mundo.

Os espaços da Torre de Tátlin deveriam ser aproveitados ao máximo para a realização de atividades. As estruturas internas seriam usadas para práticas como palestras, reuniões e transmissões de rádio.

No projeto, uma armação de aço espiral e inclinada envolveria e sustentaria quatro estruturas menores de vidro. Visíveis por entre a armação exterior, essas estruturas menores deveriam girar em velocidades diferentes. A maior seria um cubo 4, dentro do qual aconteceriam palestras, conferências e reuniões legislativas. A rotação completa do cubo demoraria um ano. Acima dele, haveria uma pirâmide 3, em que teriam lugar atividades governamentais; esta levaria um mês para dar uma volta completa. Mais acima, o projeto previa um cilindro 2, local para um centro de mídia, com emissora de rádio, agência de notícias, boletins e alto-falantes públicos. Essa parte levaria um dia para o giro completo. A mais alta estrutura seria um hemisfério 1, onde seriam armazenados equipamentos de rádio. A torre ainda contaria com uma tela de cinema na parte externa e emitiria projeções de luz para transmissão de propaganda em dias de céu nublado.

Ainda que preenchesse uma certa demanda por monumentos soviéticos, a torre não era apenas um exercício de grandiosidade. Como projeto construtivista, a função e utilidade social da obra eram parte essencial do projeto.

“Era para ser um monumento vivo, que também construísse, e não um monumento morto em homenagem a alguém”, explicou ao Nexo a historiadora e fotógrafa Clara Figueiredo. “A torre proporia uma determinada forma de vida, é um monumento habitável, com reuniões, uma rádio, com um papel na construção deste sujeito ativo”.

O projeto foi criado por Vladimir Tátlin, nascido no século 19 em parte do Império Russo que hoje fica na Ucrânia. Tátlin era um pintor e escultor com forte influência do cubismo de Pablo Picasso, a quem conheceu em Paris alguns anos antes da revolução. Depois de mergulhar na pintura abstrata, passou a se concentrar na exploração de materiais como metal, vidro e madeira, produzindo esculturas conhecidas como “contrarrelevo”, formas tridimensionais coladas à parede.

Com a vitória da revolução, em 1917, Tátlin apresentou-se às novas autoridades para colaborar. Queria ajudar os bolcheviques em suas aspirações de erguer um novo mundo e moldar um novo ser humano. Para isso, estava disposto a contribuir com uma “nova arte”.

“Nas praças e nas ruas estamos colocando nosso trabalho convencidos de que a arte não deve permanecer um santuário para os desocupados, um consolo para os cansados, uma justificativa para os preguiçosos. A arte deveria nos servir em todo lugar em que a vida flui e age”
– Vladimir Tátlin

A Torre de Tátlin, porém, nunca saiu do papel. O começo da revolução era um tempo de escassez e não era economicamente viável custear ou conseguir os materiais para uma empreitada arquitetônica daquele porte. Além disso, havia um risco político, de a população não compreender o investimento em um projeto tão grandioso quando havia prioridades sociais mais urgentes. Entre os opositores da torre, estava Leon Trótski, um dos principais líderes da revolução e fundador do Exército Vermelho, que teria considerado o projeto “impraticável e romântico”.

Mesmo assim, o projeto permanece como exemplo de ousadia conceitual e estética, referências nas artes e na arquitetura, tendo sido realizado como réplica várias vezes em espaços expositivos como a Royal Academy, de Londres, e o Centro Georges Pompidou, em Paris (cuja estrutura esqueletal é inspirada no projeto de Tátlin). É um ponto incontornável na história do construtivismo.

Modelo da Torre de Tátlin erguido para as celebrações do Dia do Trabalho em São Petersburgo, em 1925. O nome oficial da torre era “Monumento à Terceira Internacional”.

Música

Arseni Avraamov

Sinfonia de sirenes de fábrica1922

Um concerto bastante incomum aconteceu no porto de Baku, no Azerbaijão soviético, no dia 7 de novembro de 1922. Com regência do maestro Arseni Avraamov, ao longo das horas seguintes, uma mistura de música e ruído dominou a área portuária, envolvendo corais de operários, apitos a vapor, locomotivas, hidroaviões, baterias de artilharia e cerca de 20 sirenes afinadas de acordo com as notas do hino da Internacional Socialista. Avraamov conduzia cada parte direcionando bandeiras de sinalização.

Ouça a sinfonia (duração: 28:12)

Por seu uso de sons industriais e maquinais, “A sinfonia das sirenes” é um exemplo antecipado do que os franceses chamariam na década de 1950 de “música concreta”, ou seja, composições formadas por sons produzidos por objetos que não são instrumentos musicais.

Conceitualmente, havia a vontade de exaltar a “música” dos equipamentos e ferramentas do proletariado militar e industrial. Avraamov também determinou que não deveria haver espectadores no evento, com todos os presentes participando na obra de alguma forma, engajados na celebração revolucionária, sem hierarquia entre público e artistas. “Entre as artes, a música tem o mais alto poder e organização social. Os mitos mais antigos provam que a humanidade está inteiramente ciente deste poder. O trabalho coletivo, da agricultura ao exército, é inconcebível sem canções ou música”, disse Avraamov.

Arseni Avraamov conduz a “Sinfonia das sirenes de fábrica” com duas tochas flamejantes em Moscou, em 1923

O compositor tinha especial interesse pela criação de uma nova música, com maior capacidade de representar o século 20 que se apresentava, movido a máquinas de todo tipo, entre elas as novas tecnologias de gravação e reprodução de sons. Por anos, Avraamov foi um ativo crítico e teórico da música, participando de discussões e escrevendo artigos. Em um texto de 1916 chamado “Ciência vindoura da música e a nova era na história da música” (em tradução livre), o músico teorizou sobre a possibilidade de se criar música “sintética” por meio da análise do comportamento dos sulcos de um disco pré-gravado.

Em paralelo, era um defensor do comunismo ainda nos tempos czaristas, quando ganhou o apelido de “Revolucionário Arseni Avraamov”. Suas inclinações políticas lhe renderam uma expulsão do exército e monitoramento pela polícia. Já na era soviética, o músico e compositor se tornou comissário para as artes no ministério da educação do novo governo. Avraamov também foi um dos fundadores da Prolekult, a organização dedicada a desenvolver a nova cultura proletária.

Entre as instituições que Avraamov queria derrubar estava a escala musical de 12 tons por oitava e seu instrumento mais representativo, o piano. O músico propôs destruir todos os pianos existentes na Rússia

Entre as instituições que Avraamov queria derrubar estava a escala musical de 12 tons por oitava e seu instrumento mais representativo, o piano. Logo após a revolução, o músico propôs destruir todos os pianos existentes na Rússia por terem “viciado” o ouvido humano em uma determinada relação entre os sons. Avraamov defendia uma nova escala musical, de 48 “microtons”, que teria muito maior variação cromática do que a escala padrão.

Na década de 1920, Avraamov participou da formação de uma associação de estudos e discussões sobre música com outros expoentes russos da área, entre eles Leon Theremin, engenheiro russo que inventou o pioneiro sintetizador que leva seu nome.

Em artigo de 1916, Avraamov teorizou sobre a possibilidade de criação de uma música produzida “sinteticamente”
Apresentação da “Sinfonia das sirenes de fábrica” em Moscou; Arseni Avraamov aparece conduzindo no teto de um prédio, à esquerda
Projeto de Avraamov para um “instrumento” composto de apitos de locomotiva, cada um com uma afinação diferente, controlados por um teclado
Partitura da “Sinfonia das sirenes de fábrica”; cada músico tinha instruções para tocar apenas duas notas da sinfonia

Fotografia

Alexander Rodchenko

A Escadaria, 1929

Fotógrafo, escultor, designer e pintor, entre outras atividades, a variedade de realizações de Alexander Rodchenko se destaca mesmo quando se leva em conta o padrão multidisciplinar dos nomes da vanguarda russa. Rodchenko realizou trabalhos relevantes e inovadores em quase todas as áreas em que atuou, como, por exemplo, ao experimentar novas tipografias na revista Novyi LEF (Frente de esquerda, em tradução livre), que também contava com Maiakóvski entre seus colaboradores. Seu portfólio inclui até distintivos e papelaria para a primeira companhia aérea soviética, Dobrolet.

“A escadaria” é um exemplo de como Rodchenko convertia cenas cotidianas em imagens que pareciam quase abstratas

Rodchenko, que havia passado pelo futurismo nos anos 1910, estava entre os artistas russos que declararam a pintura como morta no início da década de 1920. Deixando para trás um extenso acervo de obras baseadas em formas geométricas, influenciadas pelo cubismo e pelo suprematismo, o artista se voltou para o desenho industrial e as artes aplicadas. Ao lado de outros artistas, fundou a corrente “produtivista”, que defendia a introdução da arte na vida cotidiana.

Em seguida, Rodchenko incorporou também a fotografia no seu repertório, realizando fotomontagens para pôsteres e publicações pró-Revolução. Em 1925, Rodchenko adquiriu um dos novos modelos da câmera Leica que podia ser segurada com uma mão apenas. A máquina possibilitou que o fotógrafo experimentasse imagens com ângulos inclinados e perspectivas incomuns, completamente inovadores para a fotografia de então. Por meio desse tipo de fotografia, Rodchenko viu a possibilidade de realizar uma nova linguagem visual que fosse artística e não apenas de registro, como era a norma entre as imagens fotográficas nesse tempo.

“Ouvinte de rádio” () é uma foto de 1929 de Rodchenko; “Construção do canal do mar Branco” ( ) foi realizada em 1932. Cada vez mais, o trabalho do fotógrafo serviu para fins de propaganda do regime soviético.

Para ele, os sistemas e traçados das coisas deveriam ser evidenciados pela arte e não escondidos. Suas fotografias destacam esse aspecto, como é o caso de “A escadaria”, em que uma imagem banal e cotidiana, uma mulher subindo uma escada carregando uma criança, adquire um aspecto geométrico e contrastado, quase abstrato. “Ser capaz de fotografar significa criar uma imagem que produz um efeito visual máximo”, disse Rodchenko sobre sua abordagem.

O fotógrafo ocupou diversos postos em órgãos culturais bolcheviques, incluindo a diretoria do departamento de museus, e foi secretário do sindicato de artistas de Moscou. Apesar de ter atraído críticas de alguns setores oficiais, pelo modo incomum de retratar pessoas e objetos, foi ganhando prestígio entre as autoridades. Na era Stálin, a partir de 1927 e especialmente na década de 1930, a câmera de Rodchenko foi servindo cada vez mais para registros de obras do governo, eventos esportivos e desfiles oficiais, que tinham como objetivo glorificar o regime.

Cartaz para editora em que mulher grita “Livros!”; a modelo é Lily Brik, então esposa do editor Osip Brik, e que tinha sido amante de Vladimir Maiakóvski

Marcha de atletas do Dynamo Sports Club; foto tirada em 1932

Teatro

Vsévolod Meyerhold

O corno magnífico, 1922

“Mesmo se tirarmos do teatro a palavra, os figurinos, a ribalta, as coxias, o edifício teatral enfim, enquanto restarem o ator e seus movimentos cheios de maestria, o teatro continuará sendo o teatro”, disse certa vez Vsévolod Meyerhold. Para o diretor e dramaturgo russo, o foco de seu teatro era o corpo, sua plasticidade e ritmo. As ideias de Meyerhold caminhavam em direção oposta às de seu contemporâneo Constantin Stanislávski, que ensinava os atores a se utilizarem de memórias pessoais para viabilizar emoções no palco.

“O papel do movimento cênico é mais importante do que o de qualquer outro elemento do teatro”, escreveu Meyerhold em 1914. “É preciso aperfeiçoar o corpo do ator”. Este deveria abandonar a intuição e o improviso e seguir instruções pré-determinadas.

Meyerhold desenvolveu sua prática e reflexão já na primeira década do século 20, inspirado em referências como a Commedia dell’Arte italiana e o teatro japonês. Em São Petersburgo, manteve de 1914 a 1917 um curso de “técnica dos movimentos cênicos”. Meyerhold foi um apoiador e entusiasta de primeira hora da revolução, propondo-se a construir um novo teatro soviético. Em 1918, virou alto funcionário da divisão de teatro dentro do comissariado de educação e cultura.

A montagem de Vsévolov Meyerhold para “O corno magnífico” tinha como único objeto de cena a estrutura de escadas e engrenagens realizada pela artista Liubov Popova

Com a revolução, Meyerhold radicalizou suas posições políticas e seus experimentos. O autor passou a ver na máquina e na fábrica inspirações para uma nova linguagem corporal que chamou de “biomecânica” a partir de 1918. O método é descrito como “a criação de um novo sistema de movimentos cênicos, fundados na exteriorização e não no desenvolvimento da interioridade”, assim como “a possibilidade de criar uma mecânica do homem em movimento, a sua nova organização motora”.

De acordo com Beatrice Picon-Vallin, especialista na história do teatro e tradutora de Meyerhold para o francês, os ateliês do diretor tinham como propósito não só uma formação de ator, mas uma construção de novo homem, “numa fusão utópica do teatro e da vida na qual o palco é concebido como o laboratório de uma sociedade futura e o ator, operário da cultura de vanguarda, como protótipo do 'homem qualificado' do futuro”.

Atores dirigidos por Meyerhold fazem movimentos segundo seu método “biomecânico”, em que o foco da interpretação é o corpo

Em 1922, Meyerhold apresentou em “O corno magnífico” o primeiro trabalho em que realiza plenamente sua visão construtivista e biomecânica, com uma peça “completamente baseada no movimento, na maestria do espaço e dos tempos cênicos”. O ambiente é minimalista, espartano: o autor dispensa as cortinas e a parede de tijolos do edifício do teatro fica visível no fundo do palco. Não havia para Meyerhold a intenção de fazer o espectador esquecer que ali ocorria uma peça de teatro. O cenário se resumia a uma estrutura de madeira com escadas, plataformas e engrenagens, em que os atores podiam ficar em cima.

Meyerhold seguiria pela década de 1920 como figura proeminente do teatro russo, colaborando com outros personagens importantes do período, como o escritor Vladimir Maiakóvski, de quem encenou vários textos, e o cineasta Serguei Eisenstein, a quem ensinou sobre preparação de atores e jogo cênico. Sua abordagem vanguardista foi se distanciando cada vez mais do que os burocratas do governo julgavam adequado. A partir da década de 1930, já na era Stálin, as experimentações formais de Meyerhold foram perdendo espaço. Foi preso e  severamente torturado em 1939 e executado no pelotão de fuzilamento em 1940. Sua obra permaneceu banida da União Soviética até 1955.

Produzido por Camilo Rocha

Layout por Guilherme Falcão e Thiago Quadros

Desenvolvimento por Ariel Tonglet

Editado por José Orenstein

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